A qualidade do Estado de Direito e do Poder Judiciário nas “Autocracias Virais”
A década 2011-2020 vem sendo mapeada pelos analistas como o refluxo da terceira onda democrática teorizada por Huntington. Os movimentos políticos de autocratização vivenciados nesta década foram catalisados pela eclosão da pandemia da Covid-19. Embora nem todos os governos com características autoritárias tenham conseguido aproveitar-se deste acontecimento para ampliar o seu raio de atuação sobre as atribuições dos demais poderes, alguns tiveram sucesso neste sentido. Não à toa, a versão 2021 do Relatório V-Dem aproveitou o trocadilho e foi chamada de “Autocratization Turns Viral”.
Ao mapear o desenvolvimento do escore que mede a qualidade da democracia liberal ao longo da década 2010-2020, o V-Dem determinou, sequencialmente, os seguintes países como os que passaram pela maior onda de autocratização: Polônia, Hungria, Turquia, Brasil, Sérvia, Benin, Índia, Mauritânia, Bolívia e Tailândia. São localidades que sofreram ataques aos seus regimes democráticos marcadamente por atores que se situam dentro dos próprios governos, com destaque inclusive para a realidade brasileira. Relatos dessas práticas são facilmente encontrados na literatura, indicando-se, por todos, Levitsky e Ziblatt.
Mas a queda na qualidade da democracia nesses países repercute na deterioração do índice que mede os seus sistemas de justiça e o funcionamento do Estado de Direito? Uma das principais entidades responsáveis por fazer tal aferição é o World Justice Project (WJP), que realiza surveys anuais com a população e especialistas de vários países. A base de dados da associação registra escores desde o ano de 2012, permitindo traçar um comparativo com a década da autocratização medida pelo V-Dem. Os elementos considerados pelo WJP para aferir o funcionamento do Estado de Direito e do Poder Judiciário são: capacidade de suas decisões constrangerem o governo, ausência de corrupção, governo aberto, garantia dos direitos fundamentais, ordem e segurança, cumprimento das decisões judiciais e capacidade de os processos civis e criminais satisfazerem as demandas apresentadas. Os escores vão de zero a um.
Tomando como base os dados apresentados em 2022, apresentamos abaixo a evolução do índice da qualidade do Estado de Direito nos dez países que passaram por maior autocratização na década, segundo o V-Dem:
Figura 1
Com poucas exceções, todos os países que tiveram a sua democracia deteriorada experimentaram igualmente uma diminuição da qualidade de atuação do seu Poder Judiciário. Isso trouxe por consequência uma piora dos índices que conformam o Estado de Direito. A visualização das linhas permite aferir que as piores experiências são as da Polônia, da Hungria, do Brasil, da Turquia e, em algum grau, da Bolívia. Visualmente, porém, vê-se que, destes cinco, os quatro primeiros são os que estão em piores condições. A tendência confirma as análises de especialistas que vêm, ao longo dos últimos anos, comentando os ataques promovidos por tais governos contra os seus Judiciários.
É interessante também conferir os escores mínimo, máximo, médio e mediano mapeados pelo WJP ao longo dos anos, levando em consideração a amostra dos dez países:
Tabela 1
Verificamos na tabela que todos os resumos numéricos apresentam deterioração da qualidade do Estado de Direito e do funcionamento do Poder Judiciário na amostra. Com o passar da década, decresceram os valores mínimo e máximo dos escores avaliados, além da média e da mediana. Destaca-se que a maior perda de qualidade deu-se no valor máximo avaliado por país. Enquanto em 2012-2013 o escore máximo alcançou 0,72, em 2022, alcançou somente 0,64. Essa distância de quase um ponto corresponde a aproximadamente 10% da capacidade qualitativa aferida.
Pode-se concluir que existe uma correlação entre a medida da autocratização dos países da amostra e a perda de qualidade do funcionamento dos seus sistemas jurisdicionais. Esse decréscimo não se manifesta no mesmo grau em todos os dez Estados e é mais acentuado na Polônia, na Hungria, no Brasil e na Turquia. A avaliação em conjunto de todos eles é importante, mas mais investigações são necessárias no sentido de decompor as variáveis de interesse a fim de detectar o que justifica alguns terem uma maior deterioração que outros.
Os dados e os códigos que levaram a este post estão disponíveis aqui.