Já tratamos aqui sobre a escalada do trabalho análogo à escravidão no Brasil e uma das conclusões extraídas dos números, organizados e analisados pelo pesquisador Lucas Patrícius de Medeiros Leite, foi que o estado de Minas Gerais apresentou aumento de quase 200% no período analisado (2020-2022), sendo a unidade da federação com o maior número de trabalhadores encontrados nessas condições nos últimos anos.
Além disso, o pesquisador nos brindou com alguns questionamentos que nos fizeram pensar, dentre eles, ‘Por qual motivo, no Brasil, o fator regional parece ser determinante para isso?’. Decidimos complementar! Segundo dados do Smartlabs, considerando recorte temporal de 1995 a 2022 e os setores econômicos vinculados às operações que envolvem situações de trabalho análogo a escravidão, por quantidade de resgate, temos:
Filtramos as atividades econômicas de acordo com a quantidade de resgates e destacamos aquelas que, no recorte temporal, contaram com mais de 100 incidentes. Percebe-se então, que todas elas estão vinculadas às atividades de produções agropecuária e extrativista.
Também segundo a leitura dos dados do pesquisador Lucas Patricius Leite, baseando-se nos dados da Lista Suja do Trabalho Escravo, atualizada pela última vez no dia 05 de abril de 2023, dos últimos 132 novos resgates, 35 são de Minas Gerais, 15 de Goiás, 13 do Piauí, 11 do Pará, 8 do Paraná, 8 do Maranhão, 7 da Bahia, 7 de Santa Catarina.
O que há de comum entre eles? Esses estados brasileiros têm economias bastante diversificadas, com várias atividades econômicas importantes destacadas em cada um. No entanto, se considerarmos a atividade econômica mais relevante em termos de participação no Produto Interno Bruto (PIB) de cada estado, a principal atividade em comum entre os estados de Minas Gerais, Goiás, Piauí, Paraná, Pará, Maranhão, Bahia e Santa Catarina é a agropecuária.
Sabendo disso, recorrendo aos indicadores do Censo Agropecuário (IBGE, 2017), analisando a quantidade de estabelecimentos que receberam alguma orientação técnica de origem do governo (federal, estadual ou municipal), de organização não-governamental (ONG) ou do Sistema S (SENAR, SENAC, SESC etc.), ou que receberam algum financiamento do governo (federal, estadual ou municipal) ou de ONG, sobre o total de estabelecimentos, segundo as Unidades da Federação, temos:
Com o desenho dos números é possível perceber o alto índice de precarização do trabalho, sendo possível equipará-lo a atividade análoga a escravidão, que está presente nas atividades econômicas vinculadas a produção agropecuária e extrativista.
Somado a isso, a desinformação pela ausência de política pública de educação e instrução técnica sobre o tema - atestada pelo estudo dos dados do Censo Agropecuário - agrava o quadro desde a perspectiva de reconhecimento da atividade precarizada pelas vítimas, até a regulamentação e o combate preventivo e repressivo dessas práticas. Comparando os dados acima e considerando o valor social do trabalho como princípio e fundamento do Estado Democrático de Direito (art. 1º, IV da Constituição Federal de 1988), a pergunta que podemos fazer é: A escassa orientação técnica destinada as áreas analisadas pode ser fator determinante para o agravamento da situação de vulnerabilidade dos trabalhadores do setor?
A percepção sobre a alta incidência de casos de resgates de trabalhadores em situação análoga a escravidão em atividades econômicas vinculadas a produção agropecuária extrativista faz perceber o problema como uma possível externalidade negativa daquela atividade, fazendo com que seja possível de se prever, regulamentar e, dessa forma, evitar que se repita. Obviamente, os números não demonstram a generalidade, porém, diante do cenário de constante alta, é a partir do reconhecimento das características do ambiente onde se cultiva a prática da precarização extrema do trabalho que podemos pensar em política públicas voltadas para a melhoria das condições dadas ao trabalhador.
Tenhamos como exemplo o caso da Bahia que, ao identificar uma característica comum em casos de resgate pessoas em condições análogas à escravidão, através do Programa Casa da Gente, criou o Conjunto Habitacional 27 de abril. Neste caso, a característica comum estava vinculada as relações sociais de sexo, eram mulheres empregadas domésticas que viviam em condições habitacionais precárias. Percebendo que a moradia era fator determinante para a perpetuação da prática criminosa, o Governo Estadual utilizou um programa habitacional para direcionar a política pública em benefício das mulheres empregadas domésticas com renda familiar de zero a três salários-mínimos, moradoras de aluguel ou na que moravam casa dos patrões.
O caso da Bahia é o perfeito exemplo do que conta Preta-Rara no livro ‘Eu, empregada doméstica: a senzala moderna é o quartinho da empregada’ e é esse exemplo de realidade que move política pública em favor da cidadania plena e que devemos aplicar a outros nichos econômicos. Onde estão as outras senzalas modernas?
Por Mariana Iasmim Bezerra Soares e Brena Christina Fernandes dos Santos