O agigantamento da atuação do Plenário Virtual do STF é um fenômeno que antecede a pandemia da Covid-19 e tem o potencial de mudar o perfil da pauta presencial da Corte O Supremo Tribunal Federal é órgão judicial com perfil parcial de corte constitucional que provavelmente tem o maior número de decisões emitidas por ano.
Seja de forma monocrática ou colegiada, os seus Ministros emitem milhares de decisões anualmente. Se estivéssemos tratando de um campeonato por produtividade, certamente o STF deixaria para trás com facilidade rivais dos países socioeconomicamente mais desenvolvidos, como a Suprema Corte dos EUA, o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha e outros.
Críticas podem ser (e são) feitas à qualidade decisória dos julgamentos, mas, quantitativamente falando, o desempenho do órgão fala por si só. Mas, se o Supremo atualmente é capaz de julgar tantos processos por ano, em parte ele deve isso ao Congresso Nacional. Por meio da Emenda Constitucional n. 45, de 30 de dezembro de 2004 (intitulada de “Reforma do Judiciário”), deu-se início ao processo que veio a culminar na atual virtualização de boa parte de seus julgamentos.
Ao instituir o requisito de admissibilidade da repercussão geral dos recursos extraordinários a serem julgados pelo STF (CF/1988, art. 102, § 3º), o Congresso incitou o Supremo a, via emendas ao seu Regimento Interno, criar o atual Plenário Virtual, ambiente eletrônico no qual os Ministros julgam os casos colegiadamente por meio do depósito sucessivo dos seus votos em sistema informatizado. O Plenário Virtual começou como um experimento contido e voltado apenas ao julgamento do reconhecimento da repercussão geral dos recursos extraordinários (Emenda Regimental n. 21/2007).
No entanto, em 2016, a sua utilização foi ampliada para o julgamento em lista dos agravos internos e embargos de declaração (Emenda Regimental n. 51/2016). Poucos anos depois, via Emenda Regimental n. 52/2019, o julgamento de medidas cautelares em controle concentrado e de eventuais outros tipos de decisões liminares ou finais nas demais classes processuais, quando houvesse jurisprudência dominante do STF sobre a matéria, foram adicionados ao Plenário Virtual.
O agigantamento final da utilização do Plenário Virtual veio com a eclosão da Pandemia da Covid-19 no Brasil. O Supremo, por meio da Emenda Regimental n. 53/2020, liberou o julgamento no ambiente eletrônico para todo e qualquer processo, independentemente da existência de jurisprudência pacífica. Esse caminho todo de alterações normativas não se deu sem percalços e aperfeiçoamentos, o que foi objeto de análise acadêmica. Qual o saldo dessa dinâmica na evolução de decisões colegiadas do STF entre os ambientes físico e virtual? É o que o gráfico a seguir demonstra, tomando como ponto de corte as datas de 01/01/2015 a 20/01/2023.
A figura apresenta três elementos que merecem ser pontuados: embora o início da pandemia da Covid-19 tenha acentuado a utilização do Plenário Virtual, o movimento de sobreposição dele sobre o ambiente físico precede 2020 (i); as partes que atuam perante o Supremo precisam aprender a lidar com uma Corte que manda a maioria dos seus casos para apreciação no sistema eletrônico, o que pode ensejar adaptações do modelo deliberativo (ii); e é preciso passar a estudar com mais afinco quais características de um processo fazem com que um Ministro “destaque” o caso do julgamento do Plenário Virtual para ao ambiente presencial, movimento que pode revelar uma tendência de o Supremo atuar mais como “Corte Constitucional”.
O cruzamento das linhas revela que a reforma fundamental para o crescimento das decisões colegiadas no Plenário Virtual foi a Emenda Regimental n. 51/2016, que trouxe para ele o julgamento em lista dos agravos internos e embargos de declaração. Até então, a mera detecção da existência de repercussão geral não gerou grande volume de decisões no Plenário Virtual. Foi a somatória de atribuições pós-2016, 2019 e 2020 que mudou este cenário. O que a pandemia da Covid-19 fez foi afastar os limites superiores de cada uma das linhas não tanto pelo aumento dos casos julgados no Plenário Virtual (com exceção do momento inicial da pandemia), mas principalmente pela redução sensível de julgamentos colegiados em ambiente presencial (ou ao menos nos aplicativos de reuniões síncronas).
A outra questão passa pela qualidade da deliberação decisória. Muitos autores criticam o modelo deliberativo da Corte por, em resumo, não propiciar debates coerentes ou sinceros sobre as preferências interpretativas dos Ministros (aqui e aqui). Seja pela forma televisionada ou pela leitura dos votos em ordem rígida, parte da literatura considera que os debates são pouco produtivos. Olhando para o problema das decisões monocráticas, este autor já sustentou que o mecanismo do Plenário Virtual poderia ser uma solução para o excesso de ordens individuais dos Ministros em casos sensíveis.
Acende-se a luz agora para o fato de uma possível decisão cautelar ou final tomada no ambiente virtual, mesmo na forma colegiada, pode ensejar um diálogo entre pessoas que não estão debatendo o mesmo assunto. As razões de decidir de cada voto, embora possam apresentar a resposta binária “Procedente/Improcedente”, podem se ancorar em elementos argumentativos desencontrados. Isso poderia atrair mais um problema de legitimidade decisória para a Corte? É possível, embora não haja (ainda) indícios apontando para tanto. A última vertente diz respeito ao necessário mapeamento empírico dos elementos que fazem com que um Ministro retire um caso do Plenário Virtual para ser julgado de forma presencial.
Quais seriam as características determinantes para tanto? Seriam questões estruturais acerca dos elementos do litígio em si ou isso dependeria da sensibilidade “política” de cada julgador? Uma hipótese a ser testada seria a de que, com o tempo, os Ministros passariam a destacar casos de alta complexidade interpretativa constitucional. Isso aproximaria o estoque de casos a serem julgados presencialmente daquilo que costumeiramente se considera o trabalho de uma corte constitucional. Uma hipótese alternativa seria a de que tenderiam a ser levados ao julgamento presencial os processos que veiculam interesses politicamente sensíveis, o que não necessariamente contribuiria para os desejos professados pelo STF de se consolidar como uma corte daqueles moldes.
O Plenário Virtual é uma ferramenta que chegou no STF e a sua atuação se consolidou nos últimos anos. Os refratários à sua adoção parecem ter perdido o embate e ele se tornou um dos principais mecanismos a serem utilizados em prol da celeridade no julgamento dos processos. Como toda ferramenta, é preciso saber como ela opera a fim de melhor utilizá-la.
Artigo originalmente publicado no Jota, em 03/02/2023