Da universalidade à exceção: os custos da judicialização da saúde no SUS
A crescente interferência do Poder Judiciário na gestão da saúde pública desestrutura o financiamento do SUS, reforça desigualdades regionais e transforma o acesso à saúde em disputa judicial
A inserção da saúde como um direito universal na Constituição de 1988 possibilitou o nascimento do Sistema Único de Saúde brasileiro, o SUS: uma proposta de gestão em saúde que continua despertando curiosidade em inúmeros países. Suas características, que priorizam a coordenação descentralizada e compartilhada, tornam o sistema um dos maiores serviços públicos de saúde do mundo, responsável por atender gratuitamente mais de 190 milhões de brasileiros, desde o atendimento ambulatorial até a realização de transplantes de alta complexidade.
Com a vigência das Leis nº 8.080/1990 e nº 8.142/1990, apelidadas de Leis Orgânicas da Saúde, somadas à Emenda Constitucional nº 29/2000, que criou os percentuais mínimos obrigatórios de investimento em saúde por parte da União, dos Estados e dos Municípios, o SUS se fortaleceu como uma política pública estruturada e respeitada, com instrumentos para atender qualquer pessoa de maneira universal e integral, imune a preconceitos, diferenciações ou exclusões.
Nos anos 1990, com a necessidade de ampliação do acesso a tratamentos para HIV/aids, abriu-se a possibilidade de buscar a garantia do acesso à saúde por caminhos que não dependessem exclusivamente dos governos e prefeituras: o Judiciário. Eram inúmeros os medicamentos ausentes das listas oficiais do Sistema Único de Saúde, e predominava a demora no fornecimento daqueles que constavam nas relações. Os tribunais passaram a ser acessados por quem precisava utilizar remédios e realizar cirurgias com a urgência que o SUS não conseguia oferecer. Estava inaugurado o fenômeno da judicialização da saúde.
Aos poucos, e agora de modo consolidado, o Poder Judiciário se firmou como uma via de acesso a medicamentos e procedimentos de saúde, configurando-se como uma política informal de saúde pública, conforme demonstra o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). A exceção tornou-se regra em estados e municípios, de forma silenciosa e vertiginosa, em um cenário no qual a emergência para salvar vidas se sobrepõe às dificuldades enfrentadas pelo gerenciamento do sistema.
Os dados apontam que, entre 2020 e 2023, o número de novos casos judiciais relacionados à saúde mais do que dobrou: de 76.836 para 162.046, revelando um crescimento de 110,9% em somente quatro anos. O orçamento da saúde, em todo o Brasil, passou a ser orientado menos por planejamento técnico e mais por decisões judiciais individuais, por vezes desconectadas das prioridades coletivas do sistema público de saúde.
A pesquisa “Assistência Farmacêutica no SUS: uma síntese dos principais resultados para gestores de saúde (2019-2023)” revela que os gastos com medicamentos judicializados em estados e municípios cresceram de forma expressiva no período. Considerando apenas os recursos próprios dos estados, o gasto com medicamentos judicializados passou de 30,1% para 37,4% entre 2019 e 2023. Trata-se de um padrão que evidencia um contexto de comprometimento da sustentabilidade orçamentária do SUS.
Os municípios também apresentaram uma tendência clara e contínua de crescimento nos gastos com medicamentos judicializados ao longo do período analisado. Em 2019, esses gastos representavam 10,6% dos recursos municipais destinados à assistência farmacêutica. Esse percentual subiu para 12,8% em 2020, alcançando 15,7% em 2021, 17,8% em 2022 e, por fim, 19,5% em 2023. Um quadro de aumento progressivo, que corresponde a quase o dobro do percentual inicial, reforçando o alerta sobre o impacto crescente das demandas judiciais sobre os orçamentos municipais e os desafios que isso impõe à gestão do SUS ao nível local.
Somente dez estados brasileiros, com dados consistentes, somaram R$ 1,68 bilhão em gastos com medicamentos judicializados em 2023 — valor que representa mais de um terço de tudo o que foi investido com recursos próprios em assistência farmacêutica nesses entes. Em alguns casos, o peso da judicialização ultrapassou 40% de todo o gasto com medicamentos custeados com recursos próprios.
Nos municípios, embora a média seja inferior, a participação dos gastos judiciais ultrapassou 50% dos recursos próprios em alguns casos, revelando que há cidades em que o orçamento público da saúde está sendo moldado pelas decisões dos tribunais. Em uma amostra de 76 municípios com dados consistentes de 2019 a 2023, foi identificado que, em alguns entes, mais da metade dos recursos próprios foi absorvida por despesas judiciais.
Os números mostram que, na região Nordeste, o fenômeno ganha corpo e complexidade. Mesmo com apenas 46,3% dos municípios admitindo fornecer medicamentos por ordem judicial — percentual abaixo da média nacional — todos os estados da região (100%) declararam fornecer medicamentos judicializados, utilizando também, assim como na Região Sul, a chamada via administrativa: instrumentos extrajudiciais criados para antecipar ou evitar ações judiciais, com a entrega de itens sem registro na Anvisa ou de uso off label (uso do produto em condições diferentes daquelas previstas na bula).
Esse quadro aumenta a insegurança jurídica e sanitária, acentuando significativamente as desigualdades regionais. Utilizando o Nordeste como exemplo, 75% dos estados fornecem medicamentos sem registro na Anvisa, e 100% relataram o uso de medicamentos off label. Além disso, 52% dos municípios da região já utilizam a via administrativa, percentual bem acima da média nacional, que é de 34,4%.
A judicialização não distribui seus efeitos de forma homogênea entre os entes federativos, e menos ainda entre as populações atendidas. A pesquisa aponta que municípios com maior população tendem a apresentar maior frequência de ações judiciais e maior proporção de recursos destinados à aquisição de medicamentos por determinação judicial.
Em contrapartida, municípios de pequeno porte, sobretudo no interior nordestino, enfrentam o desafio inverso: quando não dispõem de estrutura jurídica para responder adequadamente às demandas, são compelidos a cumprir decisões que drenam recursos já escassos, desequilibrando ainda mais os orçamentos municipais de saúde. O Ipea demonstra que a judicialização é mais frequente em locais com maior densidade populacional e com a presença ativa de Defensorias Públicas, articulação entre o Ministério Público e o Judiciário — sem esquecer da influência e do capital político que o município disponha para advogar em defesa dos próprios interesses nos bastidores do poder.
O estudo evidencia um ciclo em que os municípios com menos recursos e menor capacidade institucional — justamente aqueles que mais dependem de um SUS planejado e do cumprimento rigoroso do orçamento — são também os mais suscetíveis ao impacto desproporcional das decisões judiciais. O cenário que se apresenta é de deslocamento de recursos originalmente voltados a ações coletivas, como vacinação, atenção básica e compra centralizada de medicamentos, para atender a demandas individuais, frequentemente de altíssimo custo e com quase nenhuma efetividade coletiva.
A judicialização se converte, então, em ferramenta de injustiça distributiva, em instrumento de segregação e aprofundamento das desigualdades sociais no acesso à saúde pública: quem pode mais, judicializa mais — ou se defende melhor nos processos judiciais dos quais participa. Os dados demonstram que a capacidade de judicializar está fortemente associada a fatores como densidade populacional, capital político local, presença de Defensorias Públicas atuantes e articulação com o Ministério Público e o Judiciário. Um retrato da desigualdade estrutural pela via do direito: o enfraquecimento silencioso da equidade no SUS.
O SUS, concebido para ser universal, equitativo e solidário, vem sendo gradualmente esvaziado por um modelo de acesso condicionado à litigância, o que não apenas aprofunda desigualdades territoriais e socioeconômicas, mas também fragiliza o princípio federativo, ao impor decisões pontuais sobre sistemas de saúde pensados para atender coletivamente.
O estudo do Ipea aponta que o custo humano, fiscal e institucional da erosão silenciosa do planejamento — em nome de uma lógica judicialmente mediada de acesso à saúde — posterga ou inviabiliza políticas de prevenção, vacinação, atenção básica e aquisição planejada de medicamentos, em nome de um direito que já não é, na prática, igualmente acessível a todos.