Mais negros nas câmaras municipais do RN?
O número de vereadores pretos e pardos vem crescendo em três das quatro maiores cidades do Rio Grande do Norte. Natal, porém, destoa desse cenário com apenas 24,14% de negros eleitos em 2024.
Reflexos da questão racial no sistema representativo democrático brasileiro e a ação afirmativa proposta pelo TSE
As escravidão da população negra no nosso país deixou chagas vísíveis em vários espaços, que se manifestam das mais variadas formas na sociedade brasileira, dentre as quais: a sub-representação de pessoas pretas e pardas nos espaços de poder.
Adailson Araújo e Paulo César escreveram artigo para este blog denunciando esse problema no contexto do ensino superior (ler aqui). O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulgou estudo apontando que 83,8% dos juízes do Brasil eram brancos e apenas 1,7% se declaravam pretos (ler aqui), ao passo que, segundo o Censo 2022 do IBGE, 55,5% da população se reconhece como negra, isto é, preta ou parda. Os exemplos de distorções são incontáveis.
O fato é que, para buscar combater essa deformação, no campo das eleições, em 01.10.2020, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) julgou a Consulta nº 0600306-47.2019.6.00.0000, proposta pela deputada federal Benedita da Silva. A partir desse caso, decidiu obrigar os partidos políticos a aplicarem cotas mínimas de recursos do fundo partidário e do Fundo Eleitoral de Financiamento de Campanha (FEFC) em campanhas de candidatos negros, em percentual proporcional à quantidade de candidaturas registradas para disputa das eleições, o que deveria ocorrer a partir de 2022. Ainda em 2020, porém, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou que essa regra já deveria ser aplicada na eleição daquele ano.
A medida representou a primeira política afirmativa desenvolvida para enfrentar o desafio da sub-representação da população negra em cargos públicos eletivos no Brasil. O Congresso Nacional aprovou a Emenda Constitucional nº 133 em 2024, delimitando o percentual da reserva de recursos à 30% dos valores recebidos desses fundos. Nada obstante, trouxe para o texto da Constituição, de modo expresso, esse dever das agremiações partidárias.
Diante desse contexto, passadas duas eleições municipais, importante avaliar os resultados da ação afirmativa. Analisar o que os números e dados têm a informar sobre mudança ou permanência do cenário.
Evolução da representatividade negra nas últimas eleições municipais
Com esse objetivo, colheu-se informações disponibilizadas no Portal de Dados Abertos do TSE em relação às quatro maiores cidades do Rio Grande do Norte (Natal, Mossoró, Parnamirim e São Gonçalo do Amarante), quanto à eleição de pessoas negras para os cargos de vereador nos pleitos de 2016, 2020 e 2024.
Segundo o IBGE, a categoria “negros” representa o conjunto de pessoas autodeclaradas pretas e pardas. Por isso, levantou-se as informações tanto dessa classificação geral, como da específica das pessoas pretas.
Além de serem as maiores cidades, Natal, Mossoró, Parnamirim e São Gonçalo do Amarante também possuem os maiores colégios eleitorais, têm a maior quantidade de candidatos nas eleições, a maior quantidade de candeiras no legislativo municipal, o que justifica a escolha dessas cidades para analisar, dada a representatividade desses municípios para buscar verificar uma tendência no Estado.
O gráfico a seguir mostra a o percentual de candidatos negros eleitos em cada um desses municípios nas últimas três eleições municipais.
Gráfico 01
Os dados revelam que, em Mossoró, na eleição de 2016, o percentual de vereadores autodeclarados negros já era superior ao dos demais municípios, com 57,14% dos parlamentares. Em 2020, houve um crescimento para 69,57%, e, 2024, alcançou a marca de 76,19%.
Parnamirim e São Gonçalo do Amarante seguiram a tendência de crescimento, em especial, a primeira, explicado principalmente pelo crescimento de vereadores pretos eleitos, como se verá a seguir.
Em Natal, no entanto, houve um comportamento discrepante, com queda acentuada em 2024, ou seja, após a regra de reserva de recursos para candidatura negras. O número de vereadores negros reduziu para o patamar de apenas 24,14% dos parlamentares, totalizando 07 vereadores, na Câmara de Municipal.
É possível analisar ainda os números isoladamente, da perspectiva apenas das candidaturas de pessoas autodeclaradas pretas, excluindo, portanto, os pardos, conforme pode ser observado no Gráfico 02.
Gráfico 02
Parnamirim e São Gonçalo do Amarante não apresentaram pretos eleitos nas eleições de 2016 e 2020, mas atingiram 04 (19,05%) e 02 (11,76%) vereadores eleitos respectivamente em 2024.
Mossoró, diferentemente dos municípios citados anteriormente, teve uma trajetória mais irregular: começou com 02 vereadores pretos em 2016 (9,52%), caiu para 01 em 2020 (4,35%) e saltou para 04 em 2024 (19,05%)
Natal foi o único município que apresentou presença contínua de pessoas pretas eleitas ao longo dos três pleitos: 01 vereador eleito em 2016 (3,45%), 03 em 2020 (10,34%) e 02 em 2024 (6,90%), embora ainda com baixa representatividade e tendência de queda no último pleito.
Mesmo Mossoró tendo oito cadeiras a menos no total de vereadores na sua Câmara, em comparação a Natal, teve o dobro de candidatos pretos eleitos, em 2024. Da mesma forma do classe mais abrangente, de pessoas negras, considerando apenas as autodeclaradas pretas, a curva da evolução da capital destoa dos demais municípios.
O que se pode concluir
Ainda que a presença de negros (pretos e pardos) esteja crescendo, a sub-representação persiste, sendo este um problema a ser enfrentado nos próximos pleitos.
O levantamento realizado sugere que a deliberação da Justiça de determinar a reserva de recursos para candidaturas negras não, necessariamente, reflete em aumento da de pessoas prestas e pardas nos parlamentos municipais. Em especial, o compartamento da evolução de Natal, maior colégio eleitoral do Estado, indica que não existe, obrigatoriamente, uma relação de causa e efeito.
Esse cenário aponta para a necessidade de ampliar os levantamentos e estudos para compreender outros fatores que possam colaborar para a redução dessa desigualdade e verificar se a situação de Natal significa um ponto fora da curva, algo isolado, ou verificável de modo geral. Por óbvio, não se pressupõe que a questão racial seja a única variável observada pelo eleitor para escolha de seus representantes ou que seja a preponderante. Porém, o dado é que a lógica de discrimiação persiste, necessita de contínuo acompanhamento e enfrentamento, embora avanços contínuos sejam percebidos.